segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Capítulo I - Livro Sem Nome

Era 20 de setembro de 2013. Mais uma vez, eu estava ajudando meu pai em suas buscas em vez estar estudando. Eu sempre fazia isso quando ele me pedia. E ele sempre me pedia quando suas pesquisas indicavam que ele encontraria um fóssil em sua área de busca. Infelizmente, suas pesquisas nunca estiveram certas até aquele dia.
Sim, meu pai é arqueólogo. Era conhecido no mundo da arqueologia americana mais por sua paixão que por suas descobertas. O Dr. Jonathan Mulans era reputado por ter passado milhares de horas de sua vida consagrando-se ao estudo dos fósseis. Todos duvidavam que alguém como ele pudesse fundar uma família um dia. Mas ele fundou.
Minha mãe, por outro lado, não é do tipo que se vê na maioria das famílias. Ela tem um doutorado de História de Oxford e já deu aulas em muitas universidades de renome. Ganhadora de vários prêmios marcantes em sua carreira, é sem sombra de dúvidas um grande intelecto. Porém, quando ficou grávida de mim, entrou numa espécie de stand by profissional. E minha irmã caçula de treze anos, a Marina, só agravou a situação. A única coisa que ela faz então é escrever para jornais e apresentar palestras nos Estados Unidos todos, de tempos em tempos.
Nós quatro e Flaky, meu gato, formávamos, a meu ver, a família mais estranha do mundo. Marina e eu não tínhamos muitos amigos porque nos mudávamos cada ano para um novo lugar para que meu pai pudesse continuar suas buscas. Por isso, estudávamos em casa com professores particulares. Minha mãe passava horas na internet, dizendo estar trabalhando virtualmente para sites universitários, mas eu tenho certeza que ela passava maior parte do tempo nas redes sociais. E meu pai vivia em seus fossos e grutas à procura de fósseis.
Provavelmente, meu gato birmanês era o mais normal dentre nós.
Naquele dia, meu pai estava mais que convicto de que faria uma descoberta arqueológica inédita. De acordo com ele, algo incrível estava enterrado por ali. Ele dizia poder sentir e dizia ter sentidos desenvolvidos para esse tipo de coisa.
Porém, já cavávamos havia quase quatro horas. Ele ainda batia com fervor a picareta nas pedras para moê-las, mas eu já estava cansado. Minha camiseta estava encharcada de suor que começava a secar com a lama e meus braços doíam. Encostei a pá na parede da gruta, sentei no chão e tirei minhas botas de plástico para descansar meus pés.
– Pai, tem certeza que tem alguma coisa aqui?
Ele pôs a picareta sobre o ombro e se virou para mim. Seus olhos estavam cheios de esperança, como sempre.
– Sim, filho. Dessa vez há! Minhas pesquisas não estão erradas.
– Não foi o que eu quis dizer...
– Não importa. Steve, eu te prometo que se não houver um artefato enterrado aqui, esse será o fim da minha carreira.
Suspirei. Aquela era uma promessa difícil de ouvir, porque eu sabia que não encontraríamos nada, como das outras vezes. Fiquei de pé, peguei minha pá e voltei a cavar o barro úmido. Afinal de contas, ele era meu pai e eu o ajudaria sempre.
Subitamente, um clic! similar ao choque de metal contra vidro percutiu pela gruta. Girei nos calcanhares. Meu pai tinha deixado a picareta cair e estava olhando para o chão, estático.
– Steve...
Aproximei-me dele para ver.
Aos seus pés, parcialmente imerso no barro, estava um objeto completamente diferente de tudo que eu já tinha visto.
– Pegue a câmera – disse ele.
Meu pai tirou suas luvas de plástico do bolso e as vestiu. Então, com sua pinça e seu pincel, removeu e limpou o objeto. Enquanto isso, eu tirava fotos daquele artefato estranho e do local onde o tínhamos encontrado.
Era uma pedra redonda negra e reluzente, da qual saíam opostamente duas hastes do mesmo material, que se arqueavam e formavam um quase-círculo de 270 graus cada uma. Ela me fazia pensar no símbolo do infinito – o oito deitado –, porém não havia junção entre as hastes, ou na letra “S” maiúscula.
– Eu não disse, Steve? Sabia que encontraria!
Ele estava completamente eufórico. Para ele, aquela era uma primeira. A aspiração de toda a sua vida tinha finalmente tido um resultado positivo.
Pai, você sabe o que é isso? – perguntei intrigado.
Geralmente, as descobertas eram animais ou vegetais fossilizados, ou restos de objetos parcialmente degradados. Mas aquilo era diferente. Além de estar inteiro, brilhava como se fosse novo.
– Não faço ideia – admitiu arqueando a sobrancelha esquerda, uma mania que eu herdei dele. – Mas descobriremos cedo ou tarde. Sim, descobriremos!
Em dez minutos, pusemos o objeto num saco ziplock, limpamos as ferramentas e saímos da gruta. O sol estava quase desaparecendo. Naquela sexta-feira, poucas equipes de escavação tinham vindo trabalhar no Parque Nacional de Mammoth Cave. E todos os presentes se preparavam para partir.
– Steve, Jon! Como estão vocês?
Num passo elétrico, seu melhor amigo desde a infância, que trabalhava no mesmo ramo, se aproximou.
– Bem – respondi. – Meu pai encontrou um objeto muito estranho.
Este último, que estava no telefone com a mamãe anunciando-lhe a última novidade, desligou e abraçou seu amigo.
– Willy, cara, você não vai acreditar! Encontrei um artefato!
Ele passou o saco para seu amigo. Willy analisou o objeto com cuidado. Ele parecia tão intrigado quanto nós – enfim, eu.
– Isso não é algo natural – comentou meu pai. – Imagino que tenha sido construído por algum povo antigo.
– Isso pode ser uma grande descoberta, Jon. A associação vai ficar feliz em obtê-lo.
– Sei que vai. E meu nome esta em todos os jornais dos próximos dias.
Eu, pessoalmente, achava aquilo injusto. De fato, toda descoberta feita naquele sítio devia ser relatada à NAA – Associação Arqueológica Nacional – e ela tomava posse dos fósseis para poder estudá-los. Era ela também quem mantinha os sítios de buscas e financiavas as pesquisas. Mas, no fim, o mérito da descoberta era muito mais dela do que de quem tinha passado horas a cavar.
– Você merece, Jon. É o cara mais dedicado que conheço – cumprimentou William. – Eu tenho que ir ao aniversário do meu irmão. Me liga amanhã para comemorarmos, okay?
Então Willy nos deixou.
Meu pai e eu fomos andando até seu carro – um Land Cruiser Gx –, pusemos todo o material no cofre e nos sentamos à frente. Ele pôs seu CD favorito dos Rolling Stones para tocar e girou a chave na ignição.
– Ponha seu cinto de segurança, filho. Hoje precisamos comemorar.

O jantar estava na mesa quando chegamos. Mamãe nos esperava na porta com um sorriso no rosto e Marina estava assistindo sua série policial na televisão. Papai beijou as duas animadamente e começou a contar nosso dia antes mesmo de nos sentarmos para comer.
Quando terminamos, subi para meu quarto. Meus ombros doíam, mas decidi ignorá-los. Tomei um banho quente demorado, sentei na minha cama e abri meu notebook. Abri uma página do Google, bati “pedra em forma de s” e cliquei em “pesquisar”. Tive de mudar de palavras-chaves muitas vezes até encontrar um catálogo com o nome e uma foto de todos os tipos de pedras existentes. Nenhuma se parecia com aquela que meu pai encontrara mais cedo.
Dei uma checada no meu Facebook mas minhas pálpebras estavam ficando pesadas, então decidi ir dormir. Como não tinha nada para se fazer nos sábados em Brownsville, poderia ficar na cama até tarde.

***

Eram cinco para as dez quando levantei. Ainda de pijama, calcei minha pantufas e desci as escadas. Fui até a cozinha e dei com Marina, que comia uma tigela de cereais enquanto lia uma história em quadrinhos.
– Você viu a mamãe e o papai? – perguntou ela.
– Acabei de acordar, Marina. Eles não estão no quarto?
Ela meneou a cabeça.
– Nem no jardim, nem na garagem. Parece que foram passear sem nós.
– Isso é bom. Pelo menos a mamãe saiu da frente do computador.
Fui até a geladeira pegar o leite. Na porta, um recado escrito a mão estava pregado.
– Marina, você viu isso aqui?
– Não. O quê?
– Eles deixaram um recado. Parece que ontem à noite, depois do jantar, eles saíram para comemorar.
Peguei uma tigela e a enchi com meus cereais favoritos. Quando ia derramar o leite dentro, meu iPhone vibrou. Tinha uma nova mensagem.
“Peguem algumas peças de roupa e deem o fora de sua casa o mais rápido possível. Virei buscá-los quando puder.”
O número do remetente estava bloqueado. Mas por que alguém me enviaria uma mensagem como essa?
– Marina, olha só isso – disse passando o celular para ela.
Assim que leu, ela bufou.
– Isso se chama trote. É uma pegadinha para idiotas.
De supetão, uma pedra atravessou a janela da sala e caiu no saguão de entrada, jogando inúmeros fragmentos de vidro pelo chão. Naquele momento, soube que quem quer que tivesse mandado aquela mensagem, não estava brincando. Estávamos em perigo.
– Marina, saia pela porta dos fundos e se esconda no quintal! – disse me levantando.
– Aonde você vai?
– Vou pegar umas coisas.
Subi as escadas correndo, peguei uma mochila e entrei no meu quarto. Dentro pus meu notebook, minha carteira com meus documentos e algumas peças de roupa. Corri até o quarto de Marina e escolhi algumas vestimentas aleatoriamente.
Ouvi o som de passos correndo escada acima. Era tarde demais, eu não poderia descer. Fui até a janela e olhei para baixo. Teria de pular do primeiro andar, caso não quisesse ter de enfrentar quem quer que estivesse se aproximando. Então pulei.
Apesar da minha tentativa falha de cair nos pés e rolar para amortecer a queda, o impacto nos meus joelhos foi doloroso. Mas, em função da adrenalina, nem prestei atenção na dor.
– Steve! Aqui!
Marina sussurrava escondida detrás do cortador de grama do papai, com Flaky nos braços.
– Vamos dar o fora daqui – disse acariciando a cabeça do gato. – Ele peida quando está estressado.
Corri até ela e me agachei ao seu lado, mesmo aquele esconderijo sendo pequeno demais para duas pessoas. Olhei para a casa e, na janela do quarto de Marina, vi um homem armado. Seu olhar cruzou com o meu.
– Corre! – gritei.
Então nos precipitamos em direção da rua.
Três balas passaram perto de nós, mas conseguimos sair do alcance das armas indo para outras casas da vizinhança. Nesse momento, eu estava certo de que eles viriam atrás de nós e nos matariam. Não havia saída.
Um carro preto parou a nossa frente. O vidro blindado do carona deslizou, mostrando-nos um homem desconhecido no volante.
– Por favor, não nos mate – implorei.
O homem arqueou uma sobrancelha. Incondicionalmente, aquele gesto me tranquilizou.
– Se quiserem viver, entrem – disse o motorista.
Então nos atiramos para dentro do carro.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

10 - Pesadelo mais que real

Marina Bertoli



As irmãs desceram as longas escadas – que encontravam-se desertas, pois todos estavam no refeitório – até o saguão e subiram pela ala dos professores, cuidando para não fazer nenhum barulho. Antes de se arriscarem naquele lugar que lhes era interdito, cada uma tinha usado um feitiço de autocamuflagem que Darmouth lhes ensinara, mas Marina não tinha certeza quanto à fiabilidade dessa magia, pois era a primeira vez que utilizavam-na.
O aposento pessoal do diretor ficava após o último patamar da escada que subia em arco pela torre e a porta sempre permanecia fechada. Marina nunca tinha visto seu interior mas ficava curiosa em imaginar que objetos poderia haver naquele quarto.
Vozes vinham do interior e as meninas encostaram-se na porta para distingui-las melhor. Pelo visto, tinham chegado num timing perfeito.
– Então você realmente fez isso... – disse a voz incrédula de Derrick, o professor de esgrima.
– Na verdade, não – respondeu o diretor. – Eu simplesmente coloquei os peões em jogo. Foram eles que jogaram.
– Mas você quis que isso acontecesse, Darmouth!
– Sim, eu quis. Vamos, Derrick. Você sabe tanto quanto eu que era necessário. A profecia nunca me pareceu tão clara como agora.
– Justamente. – A voz do professor soava meio apelativa. – Você sabe muito bem o que os aguarda. Não pode fazer como se não se importasse.
– Há muito em jogo para eu pôr em prática todas as minhas virtudes. Sei que entende o que quero dizer.
Depois de um curto silêncio, Derrick suspirou pesadamente.
– Sim, entendo.
As irmãs entenderam a tempo que o professor de esgrima dirigia-se à saída e colaram-se contra a parede de pedra. Ao passar por elas, ele parou e olhou em sua direção, franzindo o cenho, mas então reassumiu a descida das escadas.
Marina olhou para Fernanda, que ela podia ver apesar da magia, e soturnamente elas concordaram em voltar ao dormitório. Mas antes que pudessem descer as escadas, a voz de Darmouth soou em suas costas.
– Eu sei que vieram me espiar. E sei que também sabem sobre a espada. Não se intrometam nos meus assuntos, caso contrário me verei obrigado a corrigi-las.
O solo começou a ondular, as pedras se desencaixaram e elas caíram num grande vácuo.

Marina acordou num sobressalto, arfante. Ao seu lado, Fernanda também tinha acordado, o que sempre acontecia quando uma das duas tinha um pesadelo. A loira sentou-se na cama da irmã e começou a acariciar seus cabelos para acalmá-la.
A morena estava aflita a pensar no quão verdadeiro lhe parecera aquele sonho. De fato, no dia em que Darmouth tinha anunciado o fim da trégua, sua irmã e ela tinham ido até a ala dos professores para espiar. E tudo tinha ocorrido exatamente como no sonho, até a parte em que Derrick partira. Nesse momento, elas tinham voltado ao dormitório.
– Você conhece Darmouth, ele não faria algo assim – assegurou sua irmã.
– Tem razão.
Trocando sussurros, as garotas conversaram até que o sono as tomasse novamente.

No dia seguinte, Marina acordou mais cedo que todas as outras meninas no dormitório. Levantou-se, foi até uma escrivaninha e, num papel virgem, escreveu uma carta.

Cara Mirabel,

Temos sentido muito a sua falta, mas nós já sabíamos que isso aconteceria. As aulas têm ocupado a maior parte do nosso tempo e, por isso, não escrevi antes. É tudo mais complicado do que eu pensava!
Se não for pedir demais, Fernanda e eu precisamos de um imenso favor seu. Quando tiver tempo livre, procure na biblioteca de meu pai ou, no pior dos casos, na biblioteca nacional, qualquer livro que cite “espada de grafeno”. Em seguida, redija tudo que encontrar em um papel e mande em um envelope privado em meu nome aqui para a escola. Quanto mais rápido puder agir, mais da minha gratidão terá.
Peço também para que guarde esse meu pedido só para você, pois é de imensa confidencialidade. Tudo que descobrir sobre essa espada, se descobrir, tem que ser enterrado no mais profundo de sua mente.
Obrigado adiantado pela ajuda. Abraços das Bertoli.

Marina

Assim que terminou, dobrou o papel e levantou a janela de vidro. Murmurando o feitiço que descobrira em um livro de magias básicas cotidianas, viu a folha dobrar-se em forma de pássaro e ganhar vida pelos ares, voando em direção de sua cidade natal.
Mirabel era a governanta de sua casa e a pessoa que mais tinha participado na sua educação. Apesar da diferença de idade, as duas gêmeas e a mulher se entendiam com perfeição. Esta não hesitaria em ajudá-las naquela busca.
Os cinco jovens se encontraram no refeitório pouco tempo mais tarde. A despeito de Yann, que fazia caretas por ter que participar de aulas teóricas aquela manhã, os garotos estavam em forma. Então Marina lhes contou sobre o texto que sua irmã descobrira na noite passada e sobre a carta que enviara hoje cedo.
– Isso é ótimo – falou Isaac. – Sinto que essa é a primeira de muitas descobertas a respeito dessa espada.
– Concordo – respondeu ela. – Depois do almoço Fernanda e eu passaremos na cabana para analisar melhor todos os livros.
– Nós nem sabemos se eles encontraram a espada em sua busca de ontem – comentou Steve.
– Eu vi Darmouth essa manhã e pela expressão em seu rosto, eles não encontraram – disse Yann.
O sino soou pelo aposento e os jovens se despediram, indo cada um a sua respectiva sala. Como sua primeira aula seria com a professora McLane, de magia elementar, ela aproveitaria para tirar suas dúvidas quanto à fiabilidade das magias de camuflagem. Ela precisava saber se seu sonho da noite passada podia ser, de alguma forma, uma revelação quando ao que podia ter acontecido naquele episódio.

terça-feira, 11 de junho de 2013

9 - O diário sem nome

Fernanda Bertoli



Fernanda mal tocou na comida que estava no seu prato na manhã do dia seguinte. Logo antes do início das aulas, Darmouth anunciou de última hora que todos fariam uma excursão puramente lúdica para que os alunos pudessem recuperar das derradeiras semanas de aulas e treinos rigorosos. Aquele era seu pretexto para vasculhar o castelo em busca da espada, sabia ela.
Assim que todos estavam de mochilas feitas, com seus piqueniques preparados, os professores guiaram uma caminhada rumo a uma colina na qual havia uma cachoeira e uma lagoa de água cristalina instalada num fosso entre grandes rochas. Sua irmã, os garotos e ela se puseram no fim da multidão, já que não pretendiam participar daquele dia de diversão que eles sabiam ser só fachada para que Darmouth e Derrick pudessem passar o pente fino na escola. Eles queriam ajudar, mesmo que de outra forma. Assim, quando abordavam o pequeno bosque próximo à escola, eles discretamente se deixaram ocultar pela vegetação e troncos densos, enquanto os demais se afastavam pouco a pouco.
Isaac rapidamente tratou de levá-los até sua cabana, parecendo superfeliz em compartilhá-la com eles. Quando entraram na casinha de madeira, Fernanda prometeu a si mesma trazer material de limpeza da próxima vez que viesse. Mas Isaac já tinha pensado naquilo, começando a distribuir panos, vassouras e esfregões. Os jovens não limparam tudo mas pelo menos a sala de estar – onde se instalariam de agora em diante em suas reuniões privadas – tinha ficado limpa e cheirosa após alguns minutos de trabalho. O resto resto eles fariam em outras ocasiões.
Assim que todos tinham se instalado nas cadeiras e poltronas do aposento, Fernanda, que havia pensado bastante na noite passada, decidiu ser a primeira a falar:
– Vamos pontuar tudo que já sabemos. Num dia, Fattus declara guerra contra nós. Os fattusianos conhecem o trabalho que Darmouth tem feito há alguns anos e sabem que os Cavaleiros serão seu principal problema na linha de frente. No dia seguinte, a espada é roubada. Não sabemos nada sobre ela a não ser que é muito importante, de alguma forma, para o equilíbrio da escola. Todos estamos de acordo que os elfos merecem o primeiro lugar na nossa lista de suspeitos?
– Sim – respondeu a unanimidade.
– No entanto nós não cremos que nenhum elfo tenha entrado na escola – disse Isaac. – Se um deles tivesse se arriscado, logo teria sido visto e Darmouth teria sido informado. O que acreditamos é que alguém da escola os está ajudando.
– Então acha que algum humano roubou a espada para os fattusianos?
– Sim.
Ela analisou a hipótese. Sem dúvidas, era a maneira mais lógica de se pensar. Mas por que um humano trairia sua própria raça, ela não conseguia entender.
– Acham que foi algum professor? – perguntou Marina.
Todos os olhares se voltaram para ela.
– Darmouth disse que havia feitiços de proteção naquela sala, não é mesmo? Será que algum aluno poderia tê-los desativado? Imagino que só um professor conseguiria tal prodígio, a menos que o diretor tivesse simplesmente protegido a espada com feitiços básicos que até eu mesma desativaria. E eu não acredito nisso. Modéstia à parte, não conheço nenhum aluno com domínio o suficiente para isso.
– Acham que devemos dizer a Darmouth que sabemos do sumiço da espada? – perguntou Steve. Era a primeira vez que abria a boca, atraindo os olhares alheios. Fernanda tinha esquecido de como ele era bonito. – Agora é tarde demais para sermos punidos. Se ele tiver bom-senso vai nos contar o que sabe e nos deixar ajudar na procura.
– Não – objetou a loira instantaneamente.
Ela lembrou-se que Darmouth escondia-lhes algo e por enquanto, mesmo que doesse pensar assim, eles não podiam confiar nele com plenitude. Deviam agir sozinhos, pelo menos no início. Como nenhum dos rapazes sabia sobre aquilo e ela não pretendia lhes revelar ainda que o diretor mentira sobre os rituais, inventou o melhor pretexto que pôde:
– Darmouth é decerto um homem muito inteligente e provavelmente já deve ter pensado na hipótese de haver um espião na escola. Se dissermos que sabemos sobre a espada, pareceremos suspeitos. Não sei vocês, mas ele me pareceu alarmado demais com o desaparecimento da espada e eu acho que esse não é o melhor momento para falarmos com ele.
– Tem razão, Fernanda – sustentou sua irmã, que compartilhava aquele segredo com ela. – Devemos continuar sigilosos e se descobrirmos algo importante, falaremos com ele. Por enquanto não temos base o suficiente e ele pode até pensar que tivemos algo a ver com esse roubo.
Todos aquiesceram, convencidos. Os cinco jovens permaneceram sentados e pensativos. Assim como Fernanda, todos tentavam encontrar algum indício que pudesse ajudá-los. Mas a loira sabia que lhes faltava uma peça para poder completar o quebra-cabeça. E não fazia ideia de como encontrá-la.
Angustiada, levantou-se e começou a caminhar em círculos pela sala. Enquanto repassava os últimos acontecimentos em sua cabeça, seus olhos admiravam o lustre e a feição dos móveis antigos. Antes de ter sido abandonada aquela devia ter sido uma bela cabana, pois mesmo naquele estado ela expunha magnificência. Então um quadro chamou a atenção da jovem. Entre as molduras douradas, pintados na tela, estavam dois jovens lado a lado, entrelaçando-se os ombros, ambos com vestes idênticas azul-turquesa e com espadas embainhadas presas em suas cinturas. Um dos jovens sorridentes pareceu familiar a Fernanda, mas ela não podia dizer com quem parecia. Então seu olhar pousou numa pequena inscrição entalhada na borda dourada – um “D” e um “G” escritos numa caligrafia delicada e graciosa. Fernanda levantou a mão para tocá-la e quando encostou no quadro, este, suspendido por um prego completamente corroído pela ferrugem, caiu. Por sorte, ela o agarrou antes que se chocasse contra o chão e o encostou contra a parede, pondo-o ao contrário para proteger o lado pintado da tela da poeira em suspensão no ar. Quando ergueu os olhos para o lugar onde deveria estar pendurado o quadro, viu uma pequeno botão preto incrustado num dos tijolos.
– Gente, venham ver o que encontrei.
Os jovens se puseram ao lado da loira e ficaram olhando para o botão.
– Um botão escondido atrás de um quadro. Meio estranho, não acham?
Ela estendeu o braço para acioná-lo.
– Espera! – alertou Isaac. – Nem sabemos o que esse botão faz. Quer dizer, se ele acionar um alarme? Ou uma bomba?
A loira olhou para ele incrédula.
– Tem razão. É melhor você sair da casa e se afastar. Assim, se tudo explodir, continuará com a nossa missão.
Isaac fechou a cara e murmurou algo sobre não querer ver a cabana em cascalhos. Fernanda apertou o botão e a parede se moveu, girando em seu próprio eixo e revelando uma estante de madeira cheia de livros.
– Uau! – exaltou-se a loira, que começava a tirar a poeira dos exemplares.
Logo as duas irmãs estavam analisando o nome de cada um dos livros antigos e soltando comentários felizes sobre suas leituras iminentes. Steve e Yann sentaram-se em duas poltronas e começaram a conversar e Isaac pegou um livro sem nome gravado na capa para folhear e passar o tempo.
– Parece que eu achei uma espécie de diário – disse o último. Depois de folhear mais um pouco, ele acrescentou: – Quem escreveu isso aqui fez um comentário sobre todos os Cavaleiros da primeira geração.
– Isso pode ser interessante para as aulas de história da magia – comentou a Loira sem tirar os olhos de um livro que analisava. – Depois você me mostra.
O tempo passou rapidamente e o sol já estava quase em seu zênite. Momentaneamente estagnados naquele mistério e decididos a não deixar que notassem sua ausência no grupo, os jovens logo alcançaram os demais e se misturaram aos alunos. Passaram a tarde se divertindo na água, jogando cartas e conversando e em seguida, quando o sol ameaçava se pôr, todos voltaram ao castelo. Após um jantar repleto de bom humor, os alunos foram deixando o refeitório pouco a pouco e instalando-se em seus dormitórios.
Assim que estava pronta para dormir, Fernanda deitou-se em sua cama com o tal diário que Yann folheara mais cedo na cabana e começou a analisá-lo. Cada pequeno capítulo descrevia cada um dos antigos Cavaleiros de um jeito muito pessoal e para ela, conhecer melhor seus antepassados, era simplesmente incrível. As páginas iam passando e ela tentava visualizar os membros da primeira geração daquela escola. Como teria sido conhecê-los pessoalmente? Será que um dia ela estaria nas páginas de um livro?
Uma folha caiu do diário sobre a cama e Fernanda pensou tê-la arrancado sem querer, mas quando viu ser outro estilo de papel entendeu que era uma anotação que estava solta. Quando a loira viu o título do texto, seu coração quase parou de bater.

A Espada de Grafeno

Hoje descobri algo incrível que ninguém mais em Migrout, além de Darmouth e de mim, sabe. Atrás da porta proibida do corredor das latrinas no térreo do castelo, existe uma espada que, com sua magia interna, protege a escola de qualquer ameaça exterior. Todavia, a história dessa espada começou centenas de anos antes.
Pouco tempo depois de nossa chegada a esse planeta, os elfos e os humanos assinaram um acordo pacífico que dividiria o continente em duas nações. Os habitantes de Fattus e os recém-chegados de Migrout selaram então um pacto mágico. Ambos os representantes das raças juraram diante de seu povo respeitar a nação vizinha, num grande ritual no qual cada nação entregou sua palavra e honra a uma espada forjada pelos fattusianos.
A espada de grafeno, como a chamamos, foi mantida na habitação das figuras mais ilustres de Migrout até passar, no fim, para as mãos de Darmouth. Quando este fundou a escola, colocou-a num recinto protegido por poderosos feitiços de proteção.
Quando ele me contou essa história, senti-me horado, pois ninguém mais sabe que a espada foi trazida para cá. E pretendo deixar esse segredo muito bem guardado.

Seu primeiro reflexo foi dobrar a folha e a colocar em seu bolso, longe da vista de qualquer pessoa. Então ela olhou para sua irmã na cama ao lado e Marina entendeu que ela tinha algo a lhe contar.
No corredor já vazio àquela hora, Fernanda fez sua irmã ler o texto. Como ela, a morena ficou estupefata com o que lia.
– Estava dentro do diário que suponho ter sido de algum Cavaleiro da primeira geração – comentou Fernanda.
– É incrível! – exaltou-se sua irmã. – E agora que sabemos mais sobre a espada será mais fácil para nossas pesquisas.
Fernanda ia dizer algo sobre irem visitar a biblioteca nacional assim que tivessem um tempo livre quando a sombra de Smirnov apareceu no fim do corredor.
– As senhoritas Bertoli quebrando regras? Isso é novo – falou o homem corcunda.
– Nós escutamos um barulho no corredor e viemos verificar que não havia ninguém – defendeu-se a loira.
– Mas era só um pássaro que tentou atravessar a janela e bateu no vidro – disse Marina.
Smirnov ergueu uma sobrancelha, parecendo incrédulo. De qualquer forma Fernanda sabia que ele não tinha motivos para desconfiar delas.
– Boa noite, senhoritas.
O velho homem deu meia-volta e as meninas entraram. Tinham que dormir para as aulas de amanhã, mas com a cabeça cheia de pensamentos seria difícil. Fernanda ajeitou-se sob o cobertor, sabendo que em algum momento o cansaço a levaria.

quarta-feira, 27 de março de 2013

8 - A espada roubada

Yann Fischer



Yann pôs a mão na barriga e se encolheu de dor. Definitivamente aquela era uma urgência e ele não aguentaria chegar ao dormitório.
– Vão sem mim. Encontro vocês depois.
Então correu, deixando entender o porquê de sua pressa pela maneira como encolhia as pernas em sua corrida. Desceu as escadas, se atirou para dentro do banheiro e entrou num boxe, aliviando-se instantaneamente. Agradeceu por ter encontrado o banheiro limpo e cheiroso.
Assim que terminou saiu do boxe – concluindo que aquele era um dos maiores prazeres da vida –, lavou as mãos e decidiu ir encontrar o pessoal na sala comunal. Mas mal tinha posto os pés no corredor que uma conversação fraca chegou aos seus ouvidos. Com um giro nos calcanhares confirmou que estava sozinho. Então percebeu que as vozes vinham do fim do corredor, abafadas pela última porta – a porta proibida.
Mais curioso do que gostaria de ser, Yann se aproximou, ignorando o pressentimento que iria se meter em outra confusão e ter novos problemas. Queria saber o que alguém estaria fazendo num local proibido e, na melhor das hipóteses, descobrir o que existia por detrás daquela proibição. Lembrava-se exatamente das palavras de um colega de classe: “Nem pense em se aproximar dali, cara. O último que tentou foi punido severamente. E nunca mais o vimos.” Yann duvidava que Darmouth fosse capaz de matar um aluno por causa de uma desobediência, mas era óbvio que todas aquelas histórias atiçavam sua curiosidade. E ele, que de acordo com as meninas era desprovido de bom-senso, sempre metia seu nariz onde não era chamado. Era algo que não podia controlar.
A porta de madeira era como qualquer outra, a não ser por uma grande inscrição em vermelho que dizia Não entrar jamais! e o fato de estar sempre minuciosamente trancafiada. Dessa vez, entretanto, estava somente encostada.
– Você não compreende o quão grave isso é? – inqueriu a voz de Darmouth com preocupação.
– Claro que compreendo. Mas você tem que compreender que sua dedução também é gravíssima. – A segunda voz era de Derrick, o professor de esgrima e, de acordo com rumores, o braço direito do diretor.
O silêncio reinou por alguns segundos e Yann temeu que ouvissem sua respiração, prendendo-a imediatamente. Até seu coração parecia fazer barulho demais. Fechou os olhos, temendo que o tivessem pego em flagrante, mas relaxou-se quando a voz do diretor se impôs novamente:
– Não vejo outra explicação, Derrick. Ninguém além dos professores sabe da existência dessa espada. Os professores e os fattusianos, pois foi um presente deles. Além disso, você sabe muito bem que é preciso um grande domínio da magia para desativar os feitiços de proteção. Feitiços que eu mesmo ativei. – Darmouth soltou um suspiro desolado. – Acredita mesmo que alguém daqui a teria pego?
– Acredito que não, mas não podemos deixar de verificar. Revistaremos os professores e seus quartos. E se for necessário, faremos o mesmo nos dormitórios dos alunos. Ela tem de estar por aqui em algum lugar.
– Faremos isso amanhã. Mandaremos a todos a uma excursão, professores e alunos, e nós checaremos todo o castelo. Se não a encontrarmos, me verei forçado a fazer uma reunião com todos os acadêmicos e pôr as cartas na mesa.
Outro silêncio se seguiu, dessa vez bem mais breve. Nesse momento Yann decidiu partir antes que fosse tarde demais.
– Vamos encontrá-la, Darmouth – disse por fim a voz consoladora de Derrick.
– Espero que tenha razão. Porque sem ela toda a estrutura dessa escola fica mais frágil que uma taça de vidro.
Yann se apressou na ponta dos pés até o banheiro e através da brecha entre a porta e a parede ficou olhando os dois homens subirem as escadas, a conversação findada. Só depois de alguns minutos decidiu sair dali e correr até a sala comunal, a cabeça em turbilhões de pensamentos confusos, não sem antes dar uma última olhada na porta proibida, que estava novamente fechada.
A sala comunal do castelo era um lugar imenso cheio de mesas de canto e poltronas, onde os jovens podiam ler, jogar ou conversar com os amigos. Era o lugar predileto também daqueles que queriam ficar com seus amados, já que estes não podiam misturar-se nos dormitórios. E, claro, era ali que os alunos se sentiam mais à vontade, já que nenhum adulto vinha supervisioná-los.
Assim que entrou encontrou as garotas e os novatos sentados em sofás em volta de uma mesa baixa. Eles não perderam tempo para atacá-lo:
– Não entupiu todo o sistema sanitário da escola, entupiu? – brincou Steve.
– Ah, então era você o elefante dentro do banheiro? – soltou Isaac.
– Engraçadinhos – retrucou. – Temo ter um assunto mais interessante que minhas necessidades para contar a vocês.
Ele pegou um lugar na roda em volta da mesa e lhes contou toda a história exatamente como ouvira, palavra por palavra, sem deslocar nenhuma vírgula. A conversa estava fresca em sua mente e ele podia revê-la claramente. Todos ouviram apreensivos e no fim assumiram um mesmo ar pensativo e ao mesmo tempo inquisitivo.
– Eu imaginei que as irmãs geniais poderiam me dizer do que se trata essa espada.
Elas se encararam de cenho franzido.
– Não temos a mínima ideia – admitiu Fernanda.
– Mas procuraremos na biblioteca – assegurou Marina.
Não encontrarão nada sobre essa espada – comentou Isaac. – Darmouth disse que só os professores e os fattusianos sabiam de sua existência. Duvido muito que haja alguma referência sobre ela, caso contrário algum aluno teria encontrado.
– A menos que estivesse num lugar reservado – falou Steve. – Poderíamos até supor que, caso exista algum livro que fale da espada, tenha sido encontrado pela pessoa que pegou a espada.
O silêncio predominou em volta da mesa. Havia muitas suposições possíveis e nenhuma informação para ajudá-los. Ao seu redor, Yann notou que algumas pessoas conversavam, mas ninguém prestava atenção neles. Será que eles deviam se preocupar com aquilo? No fim, foi Fernanda quem quebrou a atmosfera reflexiva:
– Olha, Marina e eu temos que fazer uns trabalhos para as aulas de amanhã. Vamos dar uma olhada para ver se encontramos algo sobre a espada e amanhã nos falamos.
– Podemos nos encontrar na cabana – sugeriu Isaac. – Peguem sua comida e vão para lá depois das aulas matinais.
– E por favor, que essa conversa fique só entre nós – exigiu Yann.
As irmãs concordaram, se levantaram e saíram da sala comunal. Os rapazes, sem nada para fazer, decidiram ir ao dormitório e ficar esparramos nas camas esperando a hora do jantar chegar. Yann e Steve bem que teriam cochilado um pouco, mas Isaac permanecia pensativo, inquieto com algo.
– Uma coisa está me intrigando desde ontem à noite – falou ele. – Darmouth falou em guerra, mas eu não entendi nada.
Yann se sentou na cama, visivelmente calculando por onde devia começar sua explicação. Era verdade, eles não sabiam quase nada sobre Fattus e ele esquecera de lhes contar o que estava acontecendo. Mas para eles entenderem o presente, tinham que saber o básico sobre o passado.
– Quando chegamos nesse planeta ele já era habitado por seres que chamamos elfos. Eles vivem ao leste, dentro de florestas, e a despeito das orelhas e unhas pontudas e de uma sensibilidade incrível com a natureza, não são muito diferentes de nós fisicamente. Eles são usuários da magia há muito mais tempo que nós e foi durante o primeiro contato entre nossos povos que eles nos ensinaram o que sabiam. Nós, humanos, demonstramos bastante sensibilidade para o uso da magia, mas como somos morfologicamente diferentes, era esperado que nossa magia não seria igual.
– Eles vivem em cidades?
– Não sabemos. Nunca encontramos nenhuma habitação élfica nas florestas. Mas sabemos que vivem lá. Assim que os descobrimos, tratamos de criar uma boa imagem a seus olhos. E eles, seres generosos, decidiram dividir sua terra conosco. Sua nação, ao leste, passou a chamar-se Fattus, a terra verde, em sua língua, e a nossa ficou conhecida como Migrout, o novo mundo.
– Por que a gente não viu isso nas aulas de história da magia? – perguntou Isaac, parecendo fascinado com aquela narração.
– Estudamos isso bem pequenos, é por isso. Eu devia ter lhes contado antes.
– Nada do que você falou explica o fato de estarmos em guerra com eles – cortou Steve, que Yann acreditava estar dormindo.
– Vou chegar lá. Como ia dizendo, formaram-se as nações. Nunca tivemos conflitos com eles pois sempre respeitamos as fronteiras e nunca prejudicamos o ambiente. Mas um dia eles nos mandaram um mensageiro que pedia ajuda. Ele dizia que eles estavam sob ataque de uma nação que eles ignoravam até então a existência, que cruzara o mar para acabar com suas florestas. Então nós mandamos soldados para lá o mais rápido possível e quando chegamos em Fattus, encontramos boa parte da mata destruída, queimada. Tínhamos chegado tarde. E desde esse dia, sabe-se lá por que, os elfos têm se comportado estranhamente conosco. Qualquer pequena coisa virou motivo de conflito, porém nós os evitávamos. Até que um dia, sem pretexto algum, eles declararam guerra.
– Há quanto tempo foi isso? – Isaac estava muito interessado, tendo sentado-se e arregalado bem grande os olhos enquanto escutava.
– É bem recente. Quarenta anos, mais ou menos. Foi então que Darmouth, considerado então um dos maiores magos de Migrout, formou a Escola de Cavaleiros, com o objetivo de formar jovens guerreiros mágicos para defender a nação.
– Então não houve guerra?
– Não. Conseguimos fazê-los assinar um acordo de paz, sob a condição de não ultrapassar as fronteiras e não entreter nenhuma atividade que os atrapalhasse.
Isaac pôs-se de pé e começou a andar de um lado para o outro na sala, pensativo, sob os olhares dos dois outros. Yann nunca tinha visto alguém precisar caminhar para pensar melhor.
– Eu acho que o sumiço da espada está relacionado à guerra – disse o quiinderano.
Yann não tinha pensado naquilo. A trégua tinha acabado ontem e hoje Darmouth percebeu que a espada não estava mais em seu lugar. De acordo com ele, sem a espada, e estrutura da escola fragilizava-se. Seria uma estratégia dos elfos para então poder atacar?
– Darmouth disse que desconfia dos fattusianos, não disse? Eles poderiam ter entrado aqui?
– Creio que não, sua terra é muito longe daqui. Teríamos visto um elfo nos arredores.
– Então o mais provável é que eles tenham espiões humanos no castelo.
Poderia mesmo haver um espião e Darmouth não desconfiar de nada? Alguém que os elfos teriam infiltrado no castelo para poder desestabilizar a Escola de Cavaleiros? Mais perguntas sem respostas. E Yann não gostava disso.
O sino ecoou por todo o castelo, chamado os alunos para degustar da refeição noturna.

quarta-feira, 13 de março de 2013

7 - A cabana

Isaac Firks



E a prometedora manhã de Yann, para Isaac, resumira-se na pior de sua vida. Tinha imaginado que não seria lá a maior diversão do mundo, já que ele nada entendia de espadas, mas nunca poderia ter adivinhado que seria obrigado a assistir a lutas – nas quais não via a menor graça – sob um sol escaldante e alvo de um professor de ignorância incomensurável. Como ele ousara menosprezar o tratamento especial que lhe tinha imposto seu pai na escola? Talvez ele não soubesse que as maiores descobertas tinham sido feitas por homens cultos que jamais tocaram em uma espada em toda sua existência. Talvez por isso tinha se tornado professor de uma disciplina na qual não se exige um pingo sequer de inteligência. “Aqui na escola, todos têm que manejar alguma arma. Não basta ter um cérebro superdesenvolvido, precisa trabalhar os músculos, também”, as palavras lhe voltavam com clareza. Ele não sabia e não pretendia manejar uma arma. Para que se tudo podia resolver com seu intelecto? Esse era seu veredito final.
Quando o professor finalizou com a prática matinal para que os alunos fossem tomar banho para o almoço, Yann se aproximou, arfando e sorrindo.
– Preciso de um banho urgente. Onde está Steve?
– Não sei. Ele partiu depois da luta e não voltou mais.
– Que estranho – disse franzindo o cenho.
Isaac combinou de se encontrar com Yann no refeitório e ficou olhando-o desaparecer com a multidão de jovens castelo adentro. Todavia, não tinha fome. Precisava andar um pouco, pôr a cabeça no lugar, pensar nos acontecimentos dos últimos dias. Continuava na esperança de acordar a qualquer momento, ver-se em sua cama e concluir que aquilo fora só um sonho. Mesmo que cada dia parte dessa esperança desaparecesse.
Foi caminhando sem rumo numa direção oposta ao castelo, meio sonhador. Não podia negar, aquele lugar era incrivelmente lindo. A natureza doara-se àquela região sem parcimônia, colorindo-a com uma vegetação extravagante, dispondo mananciais em cada canto e atribuindo-lhe um clima adorável para se viver. Os pássaros que cantavam sua alegria incessantemente eram a prova de que aquele era um pedaço do paraíso.
Mal percebeu quando o canto das aves se intensificou e suas pisadas começaram a fazer farfalhar as folhas secas das árvores que cobriram quase integralmente a luz do sol. Continuou caminhando, sentindo-se sempre melhor à medida que se afastava do castelo.
Então chegou a uma pequena clareira natural em cujo centro havia uma cabana de madeira aparentemente abandonada. Perguntou-se quem porventura teria vivido ali, mergulhado na natureza, e há quanto tempo. Com poucos passos cobriu a distância que o separava da rústica construção e confirmou pelas janelas de vidro cobertas de poeira que ninguém entrava ali havia um bom tempo.
Um ruído chegou aos seus ouvidos e o fez sobressaltar. Outro som seco de batida chegou a ele logo em seguida. Sem pensar duas vezes, Isaac entrou na barraca.
Uma camada de poeira cobria todo o recinto que devia ser a sala de estar mas a despeito da sujeira, tudo estava bem organizado. Se ele desse uma geral ali, poderia fazer da cabana um bom refúgio ao qual viria nos momentos em que precisava ficar só e pensar. Mas seu pensamento foi interrompido por outro som idêntico aos primeiros. Isaac se perguntou então se aquela cabana estaria mesmo abandonada. Porque se seu dono chegasse e o flagrasse fuçando em seu lar, com certeza teria problemas. Com o coração aos pulos, enquanto imaginava um lenhador maciço o estrangulando, pegou um arco e uma aljava carregada que estavam pendurados numa das paredes e saiu pela porta dos fundos, como se aquela arma fosse adiantar em algo. Então percebeu que não havia ninguém. A menos que o estivessem olhando de dentro da floresta.
O quiinderano ouviu mais uma vez o som seco. E se fosse algum animal silvestre daquele planeta? Não tinha conhecido nenhum desde que chegara e sua curiosidade insistia em ver, para talvez fazer uma correlação com algum ser de Errin. Armou o arco de uma flecha, por precaução, e se aventurou a seguir o ruído, que não tardou a se repetir outras vezes. Até que finalmente chegou a uma moita densa. Ouviu uma respiração alta do outro lado e imaginou que tipo de animal seria. E se fosse perigoso? Não importava, ele tinha que dar uma olhada.
Uma pedra então atingiu sua cabeça e ele por reflexo soltou a flecha. Pôs a mão na ferida que sangrava e xingou.
– Isaac? – interrogou uma voz não muito estranha. – É você?
O jovem saiu de detrás da planta e viu seu conterrâneo brandindo duas espadas estranhas. Assim que o viu aparecer, Steve guardou as espadas e deixou partir a tensão no corpo.
– Cara, você me deu um baita de um susto!
– E você me abriu um buraco na cabeça – retrucou.
Steve espantou-se ao ver sua mão ensanguentada. Tirou sua camisa, a rasgou e de seus farrapos fez uma atadura para estancar o sangramento de Isaac.
– Desculpa, não sabia que tinha alguém. Pensei que estava sozinho.
– Mas por que jogar pedras no vazio com tanta força?
– Raiva. Frustrado por causa da derrota. Decidi descontar nas árvores enquanto eu descansava da minha prática solitária.
Isaac assentiu. As árvores estavam riscadas por lâminas; ele não tinha sido o único danificado por Steve. Então avistou uma flecha quebrada no chão.
– Ah, minha flecha!
– Sim. Que quase me atingiu, aliás. Onde aprendeu a atirar?
– Não aprendi. Eu simplesmente soltei a corda.
– Então você é sortudo. Quase me atingiu no ombro. Teria doído muito, mas estaríamos quites – disse dando um soco no ombro de seu compatriota.
Os garotos decidiram que era tempo de ir comer algo e voltaram para o castelo. Quando chegaram no refeitório foram alvos de olhares aliviados de Yann e das meninas.
– Mas onde diabos vocês se meteram? – perguntou Yann. – Procuramos por toda parte.
– Chegamos a pensar que tinham fugido – declarou Fernanda.
– Ou sido devorados por algum animal – falou Marina.
– Estávamos dando uma volta, só isso – respondeu Steve. Era um bom álibis. – É realmente lindo, isso aqui.
– E onde é que arranjou esse arco, Isaac? – interrogou Yann.
– É uma longa história.
Então lhes recitou os acontecimentos desde o passeio para esfriar a cabeça até o encontro mau exitado com Steve.

Depois do almoço Isaac foi para o local reservado para os treinos de pontaria, um espaço no gramado atrás do castelo equipado com bonecos de palha revestidos e com alvos em espalhados em seus corpos, enquanto os outros iam a seus dormitórios passar sua tarde de folga papeando. Assim que chegou sentiu-se aliviado por estar sozinho. Não queria pagar mico na frente de outras pessoas, só queria tentar sua sorte com aquela arma que o deixava mais à vontade que uma espada. Então pegou uma flecha na aljava e a armou na corda do arco. Fechou um olho enquanto mirava, soltou a corda e viu sua flecha atingir a extremidade do alvo da cabeça do manequim. Era um bom tiro, considerando sua distância de quase dez metros.
– Há muitas coisas para corrigir – disse uma voz que ele reconheceu logo. Derrick, o professor ignóbil, estava a alguns metros dele. – Arme outra flecha.
– Ahn? – Ele recusava a acreditar que depois de tê-lo rebaixado mais cedo o professor queria dar-lhe ordens agora.
– Outra flecha. Ponha outra na corda, vamos.
Isaac obedeceu a contragosto. O professor andou até ele, corrigiu sua postura, sua pegada na flecha e o ângulo do seu braço.
– Tem que se sentir à vontade quando atira, senão nunca vai acertar o alvo. E prenda a respiração antes de soltar a corda.
Seguiu todas as instruções e atirou. Sua flecha atingiu o centro com perfeição.
– Você tem talento, Isaac. Achamos uma arma para você. Agora só precisa treinar e se afastar cada vez mais.
Ele assentiu. Não gostava de admitir, mas tinha mesmo encontrado uma arma legal. E graças os conselhos de Derrick, tinha conseguido uma ótima performance. Então armou outra flecha, disposto a recomeçar.
O professor se despediu e desapareceu de seu campo de visão. Isaac tentou mais três vezes e acertou o centro em cada tentativa. Não sabia como fazia para ser tão bom com o arco, pois nunca pegara em um antes. Certamente o fato de não haver contato direto com um adversário o tranquilizava; os arqueiros sempre mantinham distância. E sentia-se confiante com aquela arma e cada vez que atirava, algo fazia com que sua mira fora impecável. Era como se tivesse nascido para aquilo. Lamentou-se por não ter tentado antes, quando mais novo, teria lhe poupado um tratamento diferenciado dos demais alunos.
Afastou-se mais uns bons passos. Armou uma flecha, respirou fundo e atirou. A flecha atingiu o centro com perfeição.